quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Mestre Elísio — por J. G. C. Fôlha




"Mestre Elízio"[1]
Por João Gilberto Cordeiro Fôlha[2]

    Como toda cidade interiorana e antiga, aliás uma tradição brasileira, Piranhas tinha, na década de 1960, sua bandinha de música, mantida, precariamente, pela Prefeitura Municipal.
        Em verdade, aquela tradicional bandinha, se sustentava pela abnegação de seus componentes e, dentre estes, se destacava a figura do Maestro Elízio, chamado carinhosamente por todos nós como Mestre Elízio que, com seus conhecimentos musicais, nos transmitia, com galhardia, as primeiras notas até a execução do famoso dobrado "O Guarani".
        Apesar de sua humildade, aquela figura, pela tenacidade e capacidade, impunha-nos um respeito ímpar, principalmente quando, perfilados, passávamos pelas antigas ruas de Piranhas, em qualquer solenidade, quer seja cívica, religiosa ou carnavalesca.
        Para se ter uma idéia de sua sensibilidade musical lembro-me de um episódio que comprova a minha assertiva. Face os seus poucos recursos financeiros, o Mestre Elízio, nas horas vagas, era também sapateiro. Estando ele em sua tenda, na própria sede da bandinha, pregueando o solado de um sapato, tentava eu executar o dobrado "Dois Corações, solfejando meu velho e saudoso bombardino. Durante a execução falhei, confesso, poucas vezes e estas poucas vezes foram detectadas, ao longe, pelo grande Mestre. Qualquer falha que dávamos na execução de nossas músicas era "in loco", observada por ele, até o velho bombo, sob a tutela de Afonsinho, quando não atentava para a partitura respectiva, a observação viria a seguir.
        Outras passagens interessantes poderíamos citar, mas recordo-me que, certa feita, o Mestre Elízio em uma das novenas da festa da nossa padroeira (...) não apareceu na igreja com as partituras sacras. Resolvemos, então, usando, como a gente diz vulgarmente, "de ouvido", eu, Egildo, Dorinho, Joãozinho[3] e as cantoras da igreja, capitaneadas por Cacilda[4], dar início àquela novena. Lá para as tantas, adentrava o Mestre no salão da igreja ressacado para valer e, imaginem, deu um verdadeiro "show" nos seus pupilos.
        Assim era o Mestre Elízio. Um bom pai, amigo, sapateiro de primeira linha, o grande maestro da bandinha de Piranhas.
Cursava eu o terceiro ano de Direito, na velha Faculdade de Direito de Alagoas, e, pelo fato de estar no exercício do cargo de Adjunto de Promotor, na Comarca de Piranhas, me deslocava todas as terças-feiras para ali, fazendo o percurso Maceió/Delmiro Gouveia e depois Piranhas. O percurso Maceió/ Delmiro era feito no ônibus "corujão", cognominação esta pelo seu horário, ou seja, sempre pela madrugada. Pois bem, uma dessas vezes, chegava em Delmiro às 3 horas da matina e, enquanto aguardava o transporte seguinte, ouvia, ao longe, o som perfeito de um piston que executava uma música pelo meu Mestre Elízio. Curiosamente, procurei encontrar o local de onde vinha aquele tão perfeito "acorde".
Vejam vocês me deparei, num pequeno barzinho, com a figura do meu grande Mestre que, (...) juntamente com mais dois companheiros, continuava, mesmo já no ocaso de sua existência, a mostrar o grande músico e o grande boêmio que era.
Ao sentir minha presença, não se conteve o velho Mestre. Nos abraçamos e juntos choramos. Procuramos lembrar os velhos tempos de bandinha. Sensibilizado ainda mais fiquei quando o Mestre Elízio voltou-se para os seus companheiros (...) e disse: "Vocês estão vendo o melhor músico de minha bandinha de Piranhas". E continuou: "Hoje você vai ser Doutor, mas para mim continua o menino que ensinei a tocar bombardino e trombone".
As palavras do Mestre mostravam apenas a bondade que detinha em seu coração. O respeito que tinha pelo ser humano e, acima de tudo, a postura do sertanejo, principalmente de Piranhas, que prima pela sinceridade e hospitalidade.
        Foi a última vez que nos encontramos. Veio, mais tarde, a perecer o meu velho e grande Mestre Elízio. Deus o quis levar para sua orquestra, talvez não para ser o Maestro, mas para ser um grande músico, que através de suas execuções, venha irradiar, em todos nós aqui, a paz, a felicidade e o amor.





[1] Transcrição do jornal O Cacto n.º XIV. Piranhas, fevereiro de 1985. (in: Piranhas  Retrato de uma Cidade. Rodrigues Cavalcanti, Rosiane. Maceió, Edições Catavento, 1999, p. 105.
[2] Advogado, residente em Maceió, filho de Seu Afrânio Cordeiro e dona Lili Fôlha.
[3] Egildo Vieira (1947-2015), Isidoro Cordeiro e João Batista.
[4] Cacilda Damasceno Freitas (in memoriam), tabeliã, cantora da igreja e patronesse de eventos culturais; mãe do desembargador Washington Luiz e do deputado, ex-prefeito da cidade de Piranhas e fundador da Escola de Música Mestre Elísio José de Souza, em 1989, Inácio Loiola Damasceno Freitas.


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