"Mestre
Elízio"[1]
Por
João Gilberto Cordeiro Fôlha[2]
Como toda cidade interiorana e antiga,
aliás uma tradição brasileira, Piranhas tinha, na década de 1960, sua bandinha
de música, mantida, precariamente, pela Prefeitura Municipal.
Em verdade, aquela tradicional
bandinha, se sustentava pela abnegação de seus componentes e, dentre estes, se
destacava a figura do Maestro Elízio, chamado carinhosamente por todos nós como
Mestre Elízio que, com seus conhecimentos musicais, nos transmitia, com
galhardia, as primeiras notas até a execução do famoso dobrado "O
Guarani".
Apesar de sua humildade, aquela
figura, pela tenacidade e capacidade, impunha-nos um respeito ímpar,
principalmente quando, perfilados, passávamos pelas antigas ruas de Piranhas,
em qualquer solenidade, quer seja cívica, religiosa ou carnavalesca.
Para se ter uma idéia de sua
sensibilidade musical lembro-me de um episódio que comprova a minha assertiva.
Face os seus poucos recursos financeiros, o Mestre Elízio, nas horas vagas, era
também sapateiro. Estando ele em sua tenda, na própria sede da bandinha,
pregueando o solado de um sapato, tentava eu executar o dobrado "Dois
Corações, solfejando meu velho e saudoso bombardino. Durante a execução falhei,
confesso, poucas vezes e estas poucas vezes foram detectadas, ao longe, pelo
grande Mestre. Qualquer falha que dávamos na execução de nossas músicas era
"in loco", observada por ele, até o velho bombo, sob a tutela de
Afonsinho, quando não atentava para a partitura respectiva, a observação viria
a seguir.
Outras passagens interessantes
poderíamos citar, mas recordo-me que, certa feita, o Mestre Elízio em uma das
novenas da festa da nossa padroeira (...) não apareceu na igreja com as
partituras sacras. Resolvemos, então, usando, como a gente diz vulgarmente,
"de ouvido", eu, Egildo, Dorinho, Joãozinho[3]
e as cantoras da igreja, capitaneadas por Cacilda[4],
dar início àquela novena. Lá para as tantas, adentrava o Mestre no salão da
igreja ressacado para valer e, imaginem, deu um verdadeiro "show" nos
seus pupilos.
Assim era o Mestre Elízio. Um bom
pai, amigo, sapateiro de primeira linha, o grande maestro da bandinha de
Piranhas.
Cursava eu o
terceiro ano de Direito, na velha Faculdade de Direito de Alagoas, e, pelo fato
de estar no exercício do cargo de Adjunto de Promotor, na Comarca de Piranhas,
me deslocava todas as terças-feiras para ali, fazendo o percurso Maceió/Delmiro
Gouveia e depois Piranhas. O percurso Maceió/ Delmiro era feito no ônibus "corujão", cognominação esta pelo seu horário, ou seja, sempre pela
madrugada. Pois bem, uma dessas vezes, chegava em Delmiro às 3 horas da matina
e, enquanto aguardava o transporte seguinte, ouvia, ao longe, o som perfeito de
um piston que executava uma música pelo meu Mestre Elízio. Curiosamente,
procurei encontrar o local de onde vinha aquele tão perfeito
"acorde".
Vejam vocês me
deparei, num pequeno barzinho, com a figura do meu grande Mestre que, (...)
juntamente com mais dois companheiros, continuava, mesmo já no ocaso de sua
existência, a mostrar o grande músico e o grande boêmio que era.
Ao sentir minha
presença, não se conteve o velho Mestre. Nos abraçamos e juntos choramos.
Procuramos lembrar os velhos tempos de bandinha. Sensibilizado ainda mais
fiquei quando o Mestre Elízio voltou-se para os seus companheiros (...) e
disse: "Vocês estão vendo o melhor músico de minha bandinha de
Piranhas". E continuou: "Hoje você vai ser Doutor, mas para mim
continua o menino que ensinei a tocar bombardino e trombone".
As palavras do
Mestre mostravam apenas a bondade que detinha em seu coração. O respeito que
tinha pelo ser humano e, acima de tudo, a postura do sertanejo, principalmente
de Piranhas, que prima pela sinceridade e hospitalidade.
Foi a última vez que nos
encontramos. Veio, mais tarde, a perecer o meu velho e grande Mestre Elízio.
Deus o quis levar para sua orquestra, talvez não para ser o Maestro, mas para
ser um grande músico, que através de suas execuções, venha irradiar, em todos
nós aqui, a paz, a felicidade e o amor.
[1] Transcrição do jornal O Cacto n.º XIV. Piranhas,
fevereiro de 1985. (in: Piranhas — Retrato de uma Cidade. Rodrigues Cavalcanti, Rosiane. Maceió, Edições
Catavento, 1999, p. 105.
[2]
Advogado, residente em Maceió, filho de Seu
Afrânio Cordeiro e dona Lili Fôlha.
[3] Egildo Vieira (1947-2015), Isidoro Cordeiro e João
Batista.
[4] Cacilda Damasceno Freitas (in memoriam), tabeliã, cantora da igreja
e patronesse de eventos culturais; mãe do desembargador Washington Luiz e do
deputado, ex-prefeito da cidade de Piranhas e fundador da Escola de Música
Mestre Elísio José de Souza, em 1989, Inácio Loiola Damasceno Freitas.
Em verdade, aquela tradicional bandinha, se sustentava pela abnegação de seus componentes e, dentre estes, se destacava a figura do Maestro Elízio, chamado carinhosamente por todos nós como Mestre Elízio que, com seus conhecimentos musicais, nos transmitia, com galhardia, as primeiras notas até a execução do famoso dobrado "O Guarani".
Apesar de sua humildade, aquela figura, pela tenacidade e capacidade, impunha-nos um respeito ímpar, principalmente quando, perfilados, passávamos pelas antigas ruas de Piranhas, em qualquer solenidade, quer seja cívica, religiosa ou carnavalesca.
Para se ter uma idéia de sua sensibilidade musical lembro-me de um episódio que comprova a minha assertiva. Face os seus poucos recursos financeiros, o Mestre Elízio, nas horas vagas, era também sapateiro. Estando ele em sua tenda, na própria sede da bandinha, pregueando o solado de um sapato, tentava eu executar o dobrado "Dois Corações, solfejando meu velho e saudoso bombardino. Durante a execução falhei, confesso, poucas vezes e estas poucas vezes foram detectadas, ao longe, pelo grande Mestre. Qualquer falha que dávamos na execução de nossas músicas era "in loco", observada por ele, até o velho bombo, sob a tutela de Afonsinho, quando não atentava para a partitura respectiva, a observação viria a seguir.
Outras passagens interessantes poderíamos citar, mas recordo-me que, certa feita, o Mestre Elízio em uma das novenas da festa da nossa padroeira (...) não apareceu na igreja com as partituras sacras. Resolvemos, então, usando, como a gente diz vulgarmente, "de ouvido", eu, Egildo, Dorinho, Joãozinho[3] e as cantoras da igreja, capitaneadas por Cacilda[4], dar início àquela novena. Lá para as tantas, adentrava o Mestre no salão da igreja ressacado para valer e, imaginem, deu um verdadeiro "show" nos seus pupilos.
Assim era o Mestre Elízio. Um bom pai, amigo, sapateiro de primeira linha, o grande maestro da bandinha de Piranhas.
Foi a última vez que nos encontramos. Veio, mais tarde, a perecer o meu velho e grande Mestre Elízio. Deus o quis levar para sua orquestra, talvez não para ser o Maestro, mas para ser um grande músico, que através de suas execuções, venha irradiar, em todos nós aqui, a paz, a felicidade e o amor.
[1] Transcrição do jornal O Cacto n.º XIV. Piranhas,
fevereiro de 1985. (in: Piranhas — Retrato de uma Cidade. Rodrigues Cavalcanti, Rosiane. Maceió, Edições
Catavento, 1999, p. 105.
[2]
Advogado, residente em Maceió, filho de Seu
Afrânio Cordeiro e dona Lili Fôlha.
[3] Egildo Vieira (1947-2015), Isidoro Cordeiro e João
Batista.
[4] Cacilda Damasceno Freitas (in memoriam), tabeliã, cantora da igreja
e patronesse de eventos culturais; mãe do desembargador Washington Luiz e do
deputado, ex-prefeito da cidade de Piranhas e fundador da Escola de Música
Mestre Elísio José de Souza, em 1989, Inácio Loiola Damasceno Freitas.
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