A entrada de Piranhas
Samba-exaltação de João Tuana
Último em Alagoas para quem sobe o São Francisco desde a foz, a cerca de 6 horas, ou primeiro para quem desce, a cidade de Piranhas foi um porto em que confluía toda espécie de gente: mercadores, missionários, retirantes dos períodos de escassez severa, aventureiros, artistas etc.
Nesse porto onde destinos vários se cruzavam, foi construída a Estrada de Ferro Paulo Afonso (EFPA) no final do século 19, a interligar através de mais de 100 km de trilhos as localidades de Piranhas, no estado de Alagoas, e Jatobá, em Pernambuco, vencendo por terra a barreira intransponível da cachoeira de Paulo Afonso, que naturalmente interrompia a navegação do rio, pelo menos parcialmente, até o porto de Piranhas ― daqui à foz a navegação é regular.
Essa posição geográfica fez de Piranhas palco da manifestação de diversos artistas em trânsito, que se deixavam demorar, desfrutando dos ares inspiradores da paisagem e da hospitalidade dos nativos, quando não apenas aguardavam a partida do próximo trem ou embarcação que os levassem ao destino pretendido.
Um desses artistas foi o compositor, violonista, emboladeiro e comediante maceioense José Luiz Rodrigues Calazans ― o Jararaca da dupla com Ratinho, Severino Rangel de Carvalho ―, que aos 19 anos fez teatro em Piranhas e ousou se engraçar com uma das filhas do coronel José Rodrigues de Lima. Mal-sucedido em seu intento, o filho do poeta maceioense Ernesto Alves Rodrigues migrou então para Recife, onde conheceu o paraibano (de Itabaiana) Severino Rangel de Carvalho. Ambos integraram o regional Turunas Pernambucanos. Dessa participação no grupo, adotaram nomes de bichos, cabendo Jararaca ao alagoano José Luiz e Ratinho ao paraibano Severino.
Jararaca foi amigo do mestre Nemésio Teixeira e chegou a visitá-lo anos mais tarde quando junto com Ratinho gozava de grande popularidade nacional.
Outro artista em trânsito foi o mato-grossense João Tuana. Compositor hoje esquecido, deixou-nos um presente: o samba-exaltação A entrada de Piranhas. De sua origem indígena e a época da passagem pela cidade, década de 1940, já fomos devidamente informados pela escritora piranhense, poeta, compositora e memorialista, acadêmica da AAL, Rosiane Rodrigues[1] que obviamente as recolheu da tradição oral.
Assim como vários outros compositores residentes ou em trânsito que fizeram questão de registrar musicalmente o momento, João Tuana nos deixou um samba em que revela suas impressões da paisagem ao avistar a cidade encravada no vale do São Francisco.
Se a leitura apenas do título A entrada de Piranhas levantasse dúvida quanto a que entrada ele se refere, se à fluvial, em direção ao poente, ou, contrariamente, à terrestre, a disposição das primeiras imagens nos versos resolvem a questão, pois só a quem chega pelo rio ressalta aos olhos dessa maneira particular os monumentos naturais sobre os quais se instalam alguns marcos, como o cruzeiro (“tem uma pedra e uma cruz”), a capela no sopé do monte à memória de uma trágica história de amor (“Do lado esquerdo, uma capela / de uma pobre donzela” assassinada), e o Mirante (“Do lado direito, distante / se avista um lindo mirante / o século do sonhador”), estrutura piramidal em 5 camadas criada no alto do morro no fim do século 19 para saudar o século 20.
Como a capela fica precisamente na margem direita do São Francisco (estado de Sergipe) e o Mirante na margem esquerda (estado de Alagoas), percebe-se que o compositor tem uma visão panorâmica de quem sobe o rio, cerca de 2 km do porto, para quem o sentido de direção contraria a correnteza.
Mais perto, vê-se a imponente estação ferroviária (“No porto se vê a Estação / ponto de locomoção / é um prédio de valor”), mais bela construção pertencente ao complexo ferroviário criado há 140 anos.
No morro seguinte há a pequena capela de Nosso Senhor do Bonfim (“No alto, a igrejinha / embaixo, a cidadezinha / presépio do Redentor”).
É comum tratar Piranhas por “cidade lapinha”, em alusão ao presépio das festas de Natal e Reis, devido a sua conformação geográfica de povoação que teve de se acomodar às serras tal qual certo presépio estilizado onde os personagens principais são emoldurados numa minúscula paisagem medieval serrana.
Claro que aos pioneiros não ocorria essa noção. Convenientemente se instalaram numa faixa de terra entre a montanha e o rio que lhes possibilitava a criação de animais, produção de alimentos e o tráfego. Posteriormente, com o crescimento da população provocando a ocupação do morro, a paisagem inspirou algum nativo ou viajante com sensibilidade suficiente para fazer associações geográficas, estabelecendo subjetivamente elos paisagísticos, a cunhar termos como “cidade lapinha do São Francisco”.
De qualquer forma, João Tuana foi mais feliz em sua passagem do que um certo compositor, músico clarinetista carioca, momentaneamente contrariado pelo excesso de bebida a que se entregou no bar de Pedro Chico, pelo que foi detido. Deste nem o nome foi preservado, apenas a resenha no anedotário local.
Mestre Nemésio Teixeira, chefe das oficinas da rede ferroviária, acumulou nessa época o cargo de delegado. Com o depoimento do forasteiro que se declarou também músico, o maestro-delegado provocou-o a provar suas qualificações e, entregando-lhe um clarinete, ouviu bela valsa que lhe desarmou de qualquer espírito revanchista, libertando o infortunado colega.
A transcrição do samba A entrada de Piranhas de João Tuana foi feita recentemente do registro de voz da professora Ivanilde Fernandes, enviado por meio eletrônico ao também professor Paulo Jr., aos quais somos gratos.
Uma riqueza esse texto! Piranhas agradece. Quando sai esse livro?
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